10 novembro 2021

Redes sociais exigem novas iniciativas de alfabetização midiática

 


Como citar este artigo:

FONSECA, André Azevedo da. Redes sociais exigem novas iniciativas de alfabetização midiática. Revista Espaço Acadêmico, v. 21, n. 231, p. 140–148, 1 nov. 2021. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/56353. Acesso em: 10 nov. 2021.

André Azevedo da Fonseca

Resumo: Plataformas de redes sociais desenvolveram o negócio perfeito: consumidores entregam de graça a informação que eles mesmos pagam para consumir. No contexto do capitalismo informacional, o acesso a essas tecnologias é concedido em troca da moeda mais preciosa da era da informação: os dados pessoais. Essa transação impõe uma série de condicionamentos ao consumo de informação. A partir de uma pesquisa bibliográfica, o presente artigo discute as vulnerabilidades dos usuários de redes sociais diante do mercado de dados e propõe alternativas de educação a partir da perspectiva da alfabetização midiática. Concluímos que o autocontrole do tempo de uso e a compreensão do modelo de negócio das redes sociais são etapas fundamentais nas iniciativas de educação para as novas mídias.
Palavras chave: Internet; redes sociais; educação; alfabetização midiática

Social networks demand new media literacy initiatives

Abstract: Social media platforms have developed the perfect business: consumers deliver free information that they pay to consume themselves. In the context of informational capitalism, access to these technologies is granted in exchange for the most precious currency of the information age: personal data. However, this transaction imposes a series of restrictions on the consumption of information. Based on a bibliographic research, the article discusses the vulnerabilities of social network users in the data market and proposes educational alternatives from the perspective of media literacy. It was concluded that the understanding of the business model of social networks is a fundamental step in education initiatives for new media.
Key words: Internet; social network; education; media literacy

Introdução

Diferentemente do modelo de negócio consagrado pelas indústrias culturais, quem produz a maior parte dos conteúdos consumidos nas redes sociais não são as empresas de mídia: mas os próprios consumidores, de forma voluntária e compulsiva. Trata-se do negócio perfeito: consumidores entregam de graça a informação que eles mesmos vão pagar para consumir. Tudo isso a partir da comercialização dos mais profundos desejos humanos de interação social (KIRKPATRICK, 2011).

Muitos supõem que os serviços da Internet são gratuitos. O que, é claro, se trata de uma ilusão: não há almoço grátis, como dizem. O pagamento que oferecemos, contudo, nem sempre se faz em reais ou dólares, mas é realizado na moeda mais preciosa da sociedade de informação: dados. “Por trás das páginas que visitamos”, explica Pariser (2012, p. 12), “está crescendo um enorme mercado de informações sobre o que fazemos na rede, movido por empresas de dados pessoais pouco conhecidas.” Neste comércio invisível do “mercado do comportamento”, cada “indicador de clique” que sinalizamos através da nossa experiência privada na Internet é um commodity valioso. Cada busca que realizamos, cada palavra ou imagem que pulicamos na nossa linha do tempo ou nos comentários, cada curtida ou reação no Facebook, cada site ou perfil que acessamos, cada segundo retido em uma determinada página e cada movimento que fazemos com o mouse é registrado, analisado, processado e leiloado em microssegundos ao anunciante que fizer a melhor oferta.

Essa coleta massiva de dados pessoais intensifica o poder da publicidade, sobretudo nas circunstâncias em que estamos psicologicamente vulneráveis. “Se buscarmos uma palavra como ‘depressão’ no Dictionary.com, o site irá instalar 223 cookies e beacons de rastreamento em nosso computador, para que outros sites possam nos apresentar anúncios de antidepressivo” (PARISER, 2012, p. 11).

Bancos de dados com informações detalhadas sobre cada um dos usuários da Internet são comercializados por empresas que se especializaram em desenvolver inúmeros artifícios para obter quantidades fabulosas de informações pessoais a partir da exploração de nossa vaidade, de nossos desejos e de nossos vícios. Sabe aquele teste de personalidade divertido, mas evidentemente fajuto, que fazemos no Facebook, mediante autorização para que o aplicativo acesse nossos dados pessoais? Isso se trata de uma isca para acessar informações privadas, incluindo aquelas que não compartilhamos nem com os amigos, mas que circularão livremente no comércio de dados.

Além disso, usuários são mais vulneráveis do que imaginam, pois estão constantemente submetidos a uma programação meticulosamente criada para viciar. Esse ecossistema acaba comprometendo outras dimensões da experiência online, pois ao serem sistematicamente estimulados à superexposição, a tendência é que todos se tornem cada vez mais displicentes em relação aos cuidados básicos com privacidade e segurança digital. É importante sublinhar, uma vez mais, que o objetivo do estímulo ao compartilhamento de informações que até então circulavam apenas na esfera privada — de fotografias das férias familiares a documentos pessoais — é obter dados gratuitamente.

Mas como lembra Alter (2018), citando Tristan Harris, um ex-designer do Google, não se trata de atribuir a responsabilidade apenas à força de vontade dos usuários: o problema é que há centenas de profissionais das mais diversas áreas do conhecimento que, contratados a peso de ouro pelas empresas de tecnologia, trabalham incansavelmente para quebrar as barreiras de autocontrole. E tudo isso, é claro, retroalimentado por quantidades massivas de dados pessoais.

Em 2017, a jornalista francesa Judith Duportail (2017) com auxílio de um advogado, solicitou ao Tinder que a enviasse todas as informações que o aplicativo possuía sobre ela. Depois de alguns meses e de uma exaustiva troca de e-mails, ela enfim obteve acesso aos dados: 800 páginas de informações pessoais, incluindo o registro integral de todas as mensagens que ela havia recebido e enviado, de todos os seus “likes” no Facebook — afinal, como usuária do aplicativo, ela havia aceitado os termos de uso e, portanto, autorizara o acesso — de todas as suas fotos do Instagram (incluindo aquelas que haviam sido publicadas depois de a jornalista ter desvinculado as duas contas), além de seus dados de localização do GPS (graças à onipresença dos smartphones em nossa vida cotidiana, muitas empresas sabem onde e com quem provavelmente estamos em cada momento), dos detalhes sobre frequência e horários em que acessava o aplicativo, entre diversas outras informações.

Nos Estados Unidos, famílias que haviam adquirido o software Sentry, da EchoMetrix, utilizado para monitorar a atividade das crianças na Internet, foram surpreendidas quando, em 2010, descobriram que a empresa vendia dados sobre o comportamento online de seus filhos à indústria da publicidade (PARISER, 2012). Ora, no mercado de informações digitais, isso é altamente valioso. Um dossiê pessoal de cada usuário circula livremente na economia digital e sustenta a fortuna das gigantes da Internet.

Por isso, é uma ilusão supor que o acesso a serviços sofisticados como o Gmail, o Facebook, o Twitter ou o Instagram são realmente “gratuitos”. Como lembra Eli Pariser (2012, p. 12), citando Andrew Lewis: “Se você não está pagando por alguma coisa, você não é o cliente; você é o produto à venda.” Não é à toa que o Google oferece tantos serviços utilitários, como Google Docs, Google Tradutor e o Google Maps. Embora sejam ferramentas úteis, “também são mecanismos extremamente eficazes e vorazes de extração de dados, nos quais despejamos os detalhes mais íntimos das nossas vidas” (PARISER, 201, p. 12). Entregamos ouro em troca de likes.

Irrelevância e pós-verdade

O que este público viciado em tecnologia está curtindo e consumindo? Desconsiderando os lançamentos da indústria musical (tal como os impressionantes 4,5 bilhões de visualizações do clipe de Espacito, de Luis Fonsi), o vídeo mais acessado no YouTube em 2017, por exemplo, foi a gravação de um sujeito vestido de ostra cantando uma música romântica em um programa de calouros na Tailândia.[i] Em setembro de 2020 o vídeo já havia alcançado mais de 300 milhões de visualizações.[ii] No Brasil, das 10 personalidades mais influentes entre pessoas de 14 a 34 anos, cinco são estrelas próprias do YouTube. E em 2017, pela primeira vez desde o início deste levantamento, o primeiro lugar da lista foi um YouTuber: Whindersson Nunes.[iii]

Andrew Keen (2009), em um livro pioneiro, foi implacável em sua crítica ao que entende como vacuidade e absurdo no conteúdo geral do YouTube. Para ele, a plataforma não é mais do que uma mistura de irrelevância e narcisismo. “O site é uma galeria infinita de filmes amadores mostrando pobres idiotas dançando, cantando, comendo, lavandose, comprando, dirigindo, limpando, dormindo ou simplesmente olhando para seus computadores” (KEEN, 2009, p. 10). É preciso reconhecer que, no decorrer da década, foram desenvolvidas várias iniciativas de educação e divulgação científica no YouTube (BUENO; FONSECA, 2020). Mas quando observamos que um único vídeo de Luccas Neto mergulhando em uma banheira de Nutella (YOUTUBER, 2016) tem mais repercussão na história da cultura brasileira do que qualquer vídeo de divulgação científica nos canais brasileiros, o problema fica mais evidente.

Para Andrew Keen, essa torrente de informação amadora disseminada pelos blogs e, atualmente, pelas redes sociais, prejudicam seriamente a nossa capacidade de discernir entre uma informação relevante ou irrelevante, verdadeira ou falsa. Como lembra Morozov (2018), no modelo de negócio das grandes plataformas digitais, fake news são apenas conteúdos muito lucrativos.

Em um livro com o provocativo título: “Acredite, estou mentindo: confissões de um manipulador das mídias”, Ryan Holiday (2012), um profissional de relações públicas dos Estados Unidos, explica todos os truques que ele mesmo utilizava para disseminar notícias falsas e provocar polêmicas cuidadosamente construídas para promover seus clientes através de propaganda involuntária de ativistas indignados. Ao contrário de se aborrecer com a repercussão negativa de suas ações de marketing, Holiday incendiava as redes sociais com campanhas controversas e lucrava com a energia das redes sociais, explorando os desejos, as vaidades e até mesmo a ideologia dos internautas. Os títulos dos capítulos já indicam alguns desses truques: “Como transformar nada em algo em três passos fáceis demais.” “O golpe dos blogs: como os sites ganham dinheiro online.” “Blogueiros são pobres, ajude-os a pagar suas contas.” “Dê-lhes o que se espalha, não o que é bom.” “Simplesmente invente (todo mundo está fazendo isso)”

Infelizmente, o exercício de buscar fontes confiáveis de informação na Internet não é a regra que direciona a ação da maioria dos internautas. Não é difícil observar, pelos comentários nas redes sociais, como muitos não conseguem avaliar as diferenças entre, por exemplo, uma notícia publicada em um veículo jornalístico, um artigo de opinião de uma revista e um texto satírico (MORAIS, 2020). Outros reproduzem memes repletos de distorções, supondo que assim comprovam suas teses. Todo profissional de mídias sociais que gerencia páginas no Facebook sabe que a maioria das pessoas compartilha notícias sem ler efetivamente o texto.

O advento das redes sociais também provocou uma crise na capacidade de hierarquizar informações. O próprio Mark Zuckerberg, criador do Facebook, enunciou involuntariamente os termos do problema em uma declaração famosa: “A morte de um esquilo na frente da sua casa pode ser mais relevante para os seus interesses imediatos do que a morte de pessoas na África (ZUCKERBERG apud PARISER, 2012, p. 7). Ou seja, mais do que igualar questões com dimensões tão desequilibradas, distribuindo na mesma proporção frivolidades familiares e catástrofes internacionais, o algoritmo que organiza a linha do tempo do Facebook desestrutura as operações éticas de classificação das informações, impõe obstáculos ao dimensionamento dos fatos e implode os limites entre relevância e irrelevância, deseducando os usuários no campo da crítica das mídias ao induzi-los a uma interpretação narcisista, distraída e distorcida dos conteúdos.

Escapando do universo fechado

Um dos condicionamentos mais importantes de nossa experiência na Internet é aquilo que Eli Pariser chama de “filtro invisível”. Em 2009, o Google realizou uma grande mudança no seu mecanismo de busca. Até então, todos os usuários que pesquisavam determinado termo encontravam sempre os mesmos resultados, hierarquizados de acordo com um sistema complexo, mas uniforme de classificação. Mas a partir da mudança, as buscas passaram a ser personalizadas. Cada usuário obtém um resultado diferente, de acordo com um conjunto de sinalizadores associados ao seu perfil no Google, tais como a sua localização, o histórico de sites que você visitou e o registro de termos que já buscou, entre dezenas de outros indicadores. É por isso que, quando uma pessoa pesquisa o termo “programação de cinema”, o Google muito provavelmente vai mostrar os filmes em cartaz na sua cidade. Se amanhã este mesmo usuário visitar outra localidade, a busca vai entregar resultados diferentes. Da mesma forma, ao vasculhar os históricos de pesquisa e constatar que um usuário se interessa por política e outro por turismo; ou identificar, pela análise do perfil, que este internauta é solteiro e aquele é casado com filhos, uma busca vai mostrar resultados substancialmente diferentes.

A princípio, trata-se de uma tecnologia prática e confortável, pois economiza esforços e entrega resultados supostamente mais precisos, de acordo com o gosto e as necessidades individuais. Além disso, quanto mais o internauta utiliza o sistema, melhor as ferramentas funcionam, pois o algoritmo “aprende” justamente a partir da análise dos padrões de uso individual no contexto da coletividade de usuários. É isso que permite que o Google “corrija” quando você realiza uma busca com a grafia errada.

O problema é que essa lógica de programação também induz os usuários a se fecharem cada vez mais nos seus próprios interesses, em vez estimular a abertura de mundo e a tomada de consciência a respeito da complexidade de abordagens possíveis. Assim, ao invés de superar as limitações e a consequente parcialidade de nossa visão, nos retroalimentamos com redundância, a partir do consumo compulsivo de conteúdos que atendem às expectativas e confirmam os pressupostos. Se o debate democrático, por princípio, exige que os cidadãos sejam capazes de enxergar o mundo a partir do ponto de vista dos outros, o aprisionamento involuntário em conteúdos que reafirmam insistentemente o mesmo ponto de vista inviabiliza o exercício de alteridade.

Esse aprisionamento é ainda mais evidente no Facebook. Ao selecionar conteúdos que já estão ajustados ao gosto dos usuários, os algoritmos os afastam daqueles que discutem temas diferentes ou mesmo que divergem das concepções ou pautas políticas. Contudo, se a democracia, por princípio, exige que os cidadãos enxerguem as coisas pelo ponto de vista dos outros, as redes sociais tendem a confinar as pessoas em bolhas de autorreferência que têm se mostrado extremamente prejudiciais ao debate público. Parte significativa dos discursos intolerantes nas redes sociais pode ser compreendida a partir desta perspectiva. Se uma das utopias da Internet era fomentar uma comunidade global, multicultural e diversificada, as redes sociais induzem a circunscrever as relações em universos fechados em que os usuários se sentem familiarizados ao considerar o outro como um estranho.

Uma das metas declaradas do Google é o desenvolvimento de um algoritmo capaz de analisar tantas informações que seria capaz de antecipar não somente o que o usuário quer descobrir, mas também aquilo que ele gostaria de fazer. “O que eu quero fazer hoje?” — é a pergunta que faremos ao Google. “Os algoritmos que orquestram a nossa publicidade estão começando a orquestrar nossa vida”, escreve Eli Pariser. Para ele, quando esquecemos que um sistema de classificação seleciona os conteúdos que chegam a nós a partir de nossos próprios interesses prévios, os filtros de personalização de conteúdo se tornam uma espécie de autopropaganda invisível, “doutrinando-nos com as nossas próprias ideias, amplificando nosso desejo por coisas conhecidas e nos deixando alheios aos perigos ocultos no obscuro território do desconhecido” (PARISER, 2012, p. 15).

Ao restringir a exposição a conteúdos que usuários já estão predispostos a aceitar, temos menos oportunidades de nos depararmos com informações surpreendentes que contrariam as nossas expectativas. Contudo, a criatividade e a inovação frequentemente são o resultado da relação entre ideias até então interpretadas como inesperadas, ou mesmo incompatíveis. “Por definição, um mundo construído a partir do que é familiar é um mundo no qual não temos nada a aprender”, argumenta Eli Pariser. “Se a personalização for excessiva, poderá nos impedir de entrar em contato com experiências e ideias estonteantes, destruidoras de preconceitos, que mudam o modo como pensamos sobre o mundo e sobre nós mesmos” (PARISER, 2012, p. 15).

Inteligência coletiva

Ao lado da praticidade, a lógica da personalização — e de tudo o que a envolve, tal como a captura massiva de dados pessoais — traiu muitos dos prognósticos sobre o que a Internet poderia se tornar. Os pioneiros que desenvolveram a web pensavam em solucionar problemas mais importantes da humanidade do que a escolha do melhor filtro para embelezar uma selfie. O manifesto da Electronic Frontier Foundation,[iv] por exemplo, falava da criação de uma “civilização da Mente no ciberespaço”.

De fato, a solução para os grandes desafios planetários na sociedade global, tais como a prevenção de catástrofes ambientais, a poluição nas grandes metrópoles e a contaminação da água e do solo, as guerras e as migrações forçadas de refugiados, as epidemias, a miséria, a desigualdade social e a violência urbana ultrapassam os limites da compreensão individual e precisam da inteligência coletiva. De forma mais direta, são problemas monumentais que só conseguiremos resolver a partir de um esforço conjunto de compreensão e do estabelecimento de consensos mínimos na ação política. A Internet e as redes sociais, apesar de todos os problemas que descrevemos neste artigo, ainda podem se tornar instrumentos para a articulação dessas inteligências?

Muitos acreditam que sim. Mas para isso, o primeiro passo é estimular a leitura crítica das novas mídias nos espaços educativos formais e informais. Esse é o papel dos estudos de alfabetização midiática — ou media litteracy (POTTER, 1998). Essa perspectiva parte da concepção de que o estudo das mídias, nas suas mais diversas linguagens, precisa ser incorporada na rotina da formação escolar, acadêmica, profissional e cidadã. No contexto daquilo que Castells (1999) chama de “capitalismo informacional”, em que os meios de comunicação se tornaram onipresentes em todas instâncias da vida social, é indispensável conhecer as dinâmicas das novas mídias. É preciso compreender a lógica econômica das redes sociais, libertar a inteligência e a imaginação das limitações impostas pelas próprias bolhas ideológicas, superar o sectarismo político e intelectual, aprender a dialogar com a diferença e interpretar as mensagens de forma crítica e criativa, sem ingenuidades ou paranoias. Estudantes, professores, pesquisadores e profissionais não podem deixar de assumir a responsabilidade em participar e contribuir neste empenho.

Para isso, não se deve desperdiçar energia com aquelas teorias da conspiração que fabulam complôs demoníacos de vilões malignos prestes a escravizar a humanidade, por exemplo. Como os efeitos das redes sociais ocorrem em grande escala, raramente os programadores, designers ou mesmo as empresas têm plena consciência das consequências — ou dos efeitos colaterais — de suas decisões. Por isso, em termos práticos, considerando que as plataformas são fruto de iniciativas de monopólios empenhados em lucrar a partir da comercialização dos dados privados de seus usuários, um dos fundamentos que possibilitam a leitura crítica das novas mídias é a própria educação nas linguagens tecnológicas.

Se até o início do século XX as tecnologias mecânicas eram passíveis de ser compreendidas de forma empírica por qualquer observador; as novas tecnologias, fundamentadas em teorias cada vez mais complexas (e ocultas em algoritmos invisíveis) parecem misteriosas e, de certo modo, mágicas na imaginação do público nãoespecializado (FONSECA, 2019). Até mesmo o termo “inteligência artificial”, observa Lanier (2018), não passa de uma marca de fantasia criada por cientistas da computação para obter financiamentos e induzir os leigos a superestimar as maravilhas da programação. Por isso, usuários precisam compreender as linguagens básicas que proporcionam as experiências digitais.

Iniciativas como o Scratch[v] e o Code.org[vi] oferecem interfaces gráficas atraentes que favorecem o aprendizado de princípios fundamentais de programação e, assim, contribuem para desmistificar essas linguagens. Com isso, aprendemos que não há mágica, mas lógica: em última instância, o mais complexo algoritmo não passa de uma sequência de comandos simples, mas automatizados em série. Em seguida, a instalação de programas básicos de segurança online, como o uso de extensões de navegadores que bloqueiam o rastreio (como AdBlock, Disconnect ou ScriptSafe) e aplicativos que monitoram e nos educam sobre o tempo gasto na Internet (como o Momentum) também integram este esforço consciente pela reconfiguração de (maus) hábitos digitais automatizados sorrateiramente na nossa rotina.

Para Chatfield (2012), esse é o ponto de partida para um exercício permanente de autonomia: é preciso definir o lugar das tecnologias em nossas vidas, em vez de render-se à sua propaganda, como se sua presença fosse uma fatalidade independente de nossa vontade. O excesso incontrolável de distração e ruído, além de não contribuir, prejudica a reflexão. Diante os chamados ininterruptos de plataformas tecnológicas ávidas por nossa atenção, o distanciamento deliberado, portanto, é uma condição fundamental para a leitura crítica.

Considerações finais

A partir da infraestrutura da Internet, grandes empresas de tecnologia criaram plataformas de interações sociais que, para bilhões de usuários, confundem-se com a própria Internet. Na verdade, na experiência de muitos, a Internet literalmente se resume às redes sociais. Contudo, o modelo de negócio dessas empresas, pela sua própria natureza, não favorece a autonomia prometida pelos pioneiros digitais. Ao contrário, o estímulo à dependência faz parte do negócio. Na economia da atenção, o cansaço permanente e o obstinado convite à procrastinação são os pressupostos da mesma dialética do lucro.

Assim, ao lado da compreensão das linguagens tecnológicas e dos condicionamentos e contradições presentes nas plataformas, a alfabetização midiática para as redes sociais inclui o esforço assertivo de autocontrole do tempo em que estamos conectados. A prática de permanecermos constantemente distraídos por uma sucessão inesgotável de estímulos advindos das mais diversas plataformas que disputam entre si a nossa atenção nos é apresentada como um padrão inescapável. Por isso, reservar momentos deliberados de desconexão deve ser considerado como um princípio educativo.

Isso não significa, é claro, negar a importância da experiência digital. Mas diante a onipresença avassaladora da vida online, os períodos de vida offline gentilmente autoconcedidos proporcionam uma experiência de autonomia sem as distrações, interrupções ou imediatismos que não apenas caracterizam, mas definem as redes sociais. A disponibilidade online full time inviabiliza o distanciamento necessário para o amadurecimento da reflexão sobre os próprios fundamentos da comunicação. Por isso, além da compreensão do modelo de negócio, desconstruir o mito da atenção múltipla e exercitar o foco são ações educativas essenciais para não só reduzir a vulnerabilidade dos usuários, mas fortalecer sua autonomia na era digital.

Referências

ALTER, Adam. Irresistível: Por que você é viciado em tecnologia e como lidar com ela. São Paulo: Objetiva, 2018.

BUENO, L. M.; FONSECA, A. A. Panorama da divulgação científica brasileira no YouTube e nos podcasts. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 43, 2020. Salvador. Anais… São Paulo: Intercom, 2020. Disponível em http://www.intercom.org.br/sis/eventos/2020/res umos/R15–0698–1.pdf. Acesso em 16 jan. 2021.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede, vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, v. 8, 1999.

CHATFIELD, Tom. Como viver na era digital. São Paulo: Objetiva, 2012.

DUPORTAIL, Judith. I asked Tinder for my data. It sent me 800 pages of my deepest, darkest secrets. The Guardian, 26 set 2017. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2017/ sep/26/tinder-personal-data-dating-appmessages-hacked-sold. Acesso em: 19 jan. 2021.

FONSECA, André Azevedo da. Do horror tecnocrático ao encanto da máquina: imagens e mitos do fascínio tecnológico. Eikon: Journal on Semiotics and Culture, Covilhã, v. 1, n. 6, p.7–16, dez. 2019. Disponível em: http://ojs.labcomifp.ubi.pt/index.php/eikon/article/view/710. Acesso em: 31 jan. 2021.

HOLIDAY, Ryan. Acredite, estou mentindo: confissões de um manipulador das mídias. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2012

KEEN, Andrew. O culto do amador: como blogs, MySpace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

KIRKPATRICK, David. O Efeito Facebook. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.

MORAIS, Janaína Ignacio de, et al. A multi-label classification system to distinguish among fake, satirical, objective and legitimate news in brazilian portuguese. ISys: Revista Brasileira de Sistemas de Informação, [S.l.], v. 13, n. 4, p. 126-149, jul. 2020. Disponível em: http://www.seer.unirio.br/index.php/isys/article/ view/9563. Acesso em: 10 jan. 2021.

MOROZOV, E. BIG TECH: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.

PARISER, Eli. O filtro invisível. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

POTTER, W. James; CHRIST, William G. Media literacy. John Wiley & Sons, Ltd, 1998.

YOUTUBER dá ‘mergulho’ em banheira com 250 kg de Nutella. É sério! UOL. 28 out. 2016. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/tabloide/ultimasnoticias/tabloideanas/2016/10/28/youtuber-damergulho-em-banheira-com-250-kg-de-nutellae-serio.htm. Acesso em 19 jan. 2021.

[i] Dados disponíveis em https://youtube.googleblog.com/2017/12/itstime-for-youtuberewind-celebrating.html

[ii] Link do vídeo. https://www.youtube.com/watch?v=8rRfqWczmw

[iii] Dados disponíveis em https://www.thinkwithgoogle.com/intl/ptbr/estrategias-de-marketing/video/brandcast-2017-o-youtube-%C3%A9-onde-vozesganham-c-e-marcas-conquistam-resultados/

[iv] Disponível em: https://www.eff.org/pt-br

[v] https://scratch.mit.edu/

[vi] https://code.org/

Como citar este artigo:

FONSECA, André Azevedo da. Redes sociais exigem novas iniciativas de alfabetização midiática. Revista Espaço Acadêmico, v. 21, n. 231, p. 140–148, 1 nov. 2021. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/56353. Acesso em: 10 nov. 2021.