14 dezembro 2010

Ler é transformar

André Azevedo da Fonseca


Paulo Freire (1921-1997) desenvolveu uma ideia sobre leitura que tenho procurado aplicar entre meus alunos de Comunicação Social na Universidade de Uberaba (Uniube). No dia-a-dia da sala de aula, observei que a perspectiva do educador pernambucano inspira práticas muito apropriadas ao atual contexto histórico da educação brasileira. Ao superar a dicotomia entre conceito e realidade, teoria e prática, a dialética freireana reaparece como uma convocação para que os estudantes se comprometam com a transformação de suas vidas a partir dos conhecimentos que desenvolvem em sala de aula. E um dos pilares dessa pedagogia são as reflexões a respeito do conceito de leitura.

Primeiramente, para Freire, um texto jamais deve ser lido com a ligeireza e a displicência daqueles que acreditam que o conhecimento é um processo meramente acumulativo. Ele defendia que um palmo de leitura não significa necessariamente um palmo de conhecimento. Textos devem ser enfrentados com seriedade, com rigor. Aprender é um processo muito mais profundo, complexo e intenso do que a simples memorização mecânica de informações descoladas da realidade. Essa memorização leva apenas ao que Freire chamava de “verbosidade”, de “palavra oca”. Conhecimento é outra coisa.

Assim, ele defendia que só lemos verdadeiramente um texto quando o reescrevemos, quando reconstruímos as idéias do autor com nossas próprias reflexões. A leitura plena da palavra ocorre na medida em que nos tornamos co-autores das idéias impressas nos livros. Um bom leitor é aquele que desafia cada parágrafo, que digere e metaboliza os conceitos, reinventando-os criativamente e aplicando-os na construção de novos conhecimentos. Essa atitude requer persistência e coragem de pensar e de fazer. Dessa forma, enfrentar um texto com seriedade vale muito mais do que ler dezenas de livros de forma automática.

Mas Freire aprofundou ainda mais o conceito de leitura. Para ele, não lemos apenas as palavras, os textos e os livros. Lemos o mundo, a cidade, as pessoas. A sociedade é um texto que exige uma espécie de alfabetização para que possa ser lido com criticidade. E além disso, Freire observava que a leitura da realidade precede a leitura da palavra. Aprendemos a ler o mundo antes mesmo de decodificar os sinais gráficos das letras. Assim, ler o mundo é tão importante quanto ler a palavra. Na verdade, um não está dissociado do outro. São dois momentos que se dialetizam no ato de pensar.

Freire defendeu ainda que não é apenas na escola que se estuda. Estudamos as questões concretas no dia-a-dia, buscamos soluções para problemas reais que nos desafiam, e isso também é estudar. Um sujeito que observa a correnteza de um rio para calcular o tipo de isca mais adequado ao anzol está estudando. O garoto que observa a movimentação de um formigueiro para verificar a iminência da chuva também está estudando. É um equívoco, para o educador pernambucano, dizer que só se estuda na escola.

Prosseguindo o raciocínio, o fato é que se um texto só pode ser lido se o reescrevemos, assim também ocorre com a leitura da realidade. Ou seja, ler a realidade é reescrevê-la. E reescrevê-la significa transformá-la. Isso quer dizer que, epistemologicamente, só estamos sendo bons leitores de mundo se estamos transformando esse mundo. não é aprendizagem, não é conhecimento. É preciso transformar para conhecer.

Freire dizia que nós, homens e mulheres, não somos um reflexo da realidade; mas sempre uma reflexão sobre ela. E a teoria não é algo à parte, distante da vida material; mas é uma luz que deve incidir sobre a prática cotidiana para nos fazer enxergar melhor suas estruturas concretas. Para que o “ciclo gnosiológico” (ciclo do conhecimento) se realize, é preciso ler e reelaborar o lido, estudar e refazer o estudado, apreender e aplicar o aprendido, observar e intervir no incessante processo de transformação social, assumindo humanamente a vocação de sujeitos históricos, inacabados, e por isso mesmo em constante transformação. Dessa forma, reinventar o mundo, pronunciá-lo com “palavras grávidas de realidade”, é a própria condição de sua leitura. Somente transformando a humanidade, que criamos e fazemos parte, é possível conhecê-la com profundidade.

E é por tudo isso que a leitura jamais pode ser entendida como um mero momento de memorização. Ler é transformar.

Um comentário:

Profª Andréa Prado disse...

Olá, André!
Sou professora de Língua Portuguesa. Atualmente, estou na coordenação pedagógica de 6ºs e 7ºs anos-E.F.II, no Colégio Marista de Goiânia, mas sou Uberabense (moro em Gyn há 9 anos). Vi o seu perfil no facebook, pois temos amigos em comum. Entrei em seu blog e me deparei com o texto "Ler é transformar". Perfeito!Vou pedir licença para usá-lo com o meu grupo de professores, na primeira formação de agosto. Você traduz o pensamento de Paulo Freire de forma clara e objetiva. Para cada gênero/tipo de texto temos que lançar mão de habilidades de leitura compatíveis. Tenho insistido com os professores que não é só a Língua Portuguesa responsável pela leitura na escola, mas cada um na sua área, tem a tarefa de conduzir e ensinar estratégias de leitura específicas para cada texto desenvolvendo habilidades para compreensão e apreensão de informações, interpretação da diversidade de textos que circula, além de todo o cenário que compõe a nossa realidade. Para isso, é importante que compreendam o que é ler.Que leitura ultrapassa os limites da escola. A chave, quem dá somos nós, os professores. Isso você fez em seu texto com mestria.Você está dando a chave para a compreensão do que é leitura e qual é a sua finalidade. Parabéns! Posso usá-lo? Sou sua sua seguidora a partir de agora. Andréa Prado