25 agosto 2017

Resenha de Twin Peaks, de David Lynch



A nova temporada de Twin Peaks, do David Lynch, traz, em algumas camadas mais profundas da narrativa, uma discussão fundamental que estava faltando diante esse excesso de informação que a gente experimenta no século 21. Sabe, diante essa impressão de há tanta informação circulando que os problemas existenciais já estariam resolvidos. Ou teriam condições de ser resolvidos.

É impossível dar spoiler em Twin peaks, é claro! Porque David Lynch sempre oferece infinitas leituras. Eu não vou ficar também contextualizando a série. Muita gente já faz isso. É só buscar na web. E a minha ideia não é fazer uma resenha, mas um convite à reflexão à partir da obra.

Mas na minha leitura, em particular, uma das principais qualidades de Twin Peaks é que a série nos reensina que a realidade é absolutamente estranha e que nossas impressões sobre o mundo, assim como nossa inteligência e nossa capacidade de discernimento, são apenas cômicas.

A gente não entende o mundo.

Qualquer tipo de entendimento, nessa etapa da história da humanidade, é uma ilusão criada por nós mesmos para confortar a nossa imaginação diante a perplexidade da realidade que é inacessível.

Não é que a gente entende o mundo. A gente simplesmente se acostuma com essa rotina absurda em que fomos envolvidos pela realidade social construída por nós mesmos, e aí o hábito cria a ilusão de que nós compreendemos o que está acontecendo. Mas é um equívoco comovente supor que a nossa sensibilidade ou as nossas racionalizações seriam capazes de penetrar nas profundezas da realidade. A humanidade criou as religiões, as artes, as ciências, a política, as instituições, tudo para tentar inventar um sentido, colocar alguma ordem e viver do jeito que dá.

Mas nas camadas mais profundas, nos alicerces que sustentam esse sentido e essa ordem...

sabe quando você vai no porão e descobre que aquela mansão tão iluminada esconde uma confusão de fios desencapados, cheio de goteiras, prestes a entrar em curto circuito e incendiar a casa a qualquer momento... e as pessoas vivendo as suas vidas normalmente, sem ter noção de que a qualquer momento podem simplesmente, do nada,... explodir.

Twin Peaks é pura liquidez, no sentido de que a narrativa se escorre entre as frestas, as rachaduras, os ralos, os bueiros da realidade. Por isso que é uma série diferente. A gente está muito acostumado com filmes de uma camada só. O sentido é só aquele superficial. Uma coisa leva à outra e o desfecho tem sentido. Mas a narrativa de Twin Peaks não é uma quadra de esportes, é uma escadaria, e uma escadaria daquelas que quanto mais a gente desce, mais escuro fica, e a gente pode até se acostumar com a escuridão, mas a gente nunca consegue ultrapassar a sombra que se move com os nossos passos e sempre esconde o último degrau, que nunca chega, não importa o quão profundo a gente está.

E é assim que vivenciamos, com Twin peaks, a experiência rara de submergir no esgoto da realidade, no pântano que alicerça as convenções sociais, na carne viva das máscaras sociais. A gente vê isso nos diálogos. Sabe quando está rolando uma conversa aparentemente trivial, mas que esconde uma combustão. Não há cena gratuita em Twin Peaks. E ao mesmo tempo, nenhuma cena foi feita para explicar. É bobagem buscar explicação. Não é essa a experiência da série. O barato é se deixar levar pelas rachaduras.

David Lynch nos lembra que somos criaturas absolutamente perdidas e perplexas diante um mundo incompreensível. Ele nos confunde para nos lembrar que aquilo que julgamos ser a realidade não passa de ilusões criadas por nós mesmos para esconder os nossos monstros interiores. Nada mais falso que a realidade. Twin peaks não deve ser visto como um enigma. Que teria alguma solução.

Ou como um pesadelo de alguém que uma hora vai acordar.

Mas como um mistério.

Sabe, aquele mesmo mistério, aquela mesma substância que forja as religiões, mas que, no caso da série, só nos mostra o abismo. O abismo que há entre a realidade e a nossa compreensão. O abismo que há entre a nossa inteligência e o fundamento da realidade. Não há esperança em Twin Peaks. O que há é assombro permanente.

E de novo, em um tempo em que todo mundo, talvez, para se defender da perplexidade, parece sustentar tanta certeza e clareza sobre as coisas, sobre as suas próprias convicções, sobre os seus próprios valores, e em um tempo também tão superficial, de gente se acostumando a acreditar que os problemas têm soluções simples, de uma infinidade de séries que oferecem a experiência da coerência, onde tudo se resolve no fim, para mim, essa é a série mais bem-vinda do século! Nós precisamos recuperar a capacidade de nos assombrarmos com a realidade e encararmos o mistério sem máscaras.

Recomendo a série amplamente.

Nenhum comentário: